Persona 3, quando lançado em 2006, para o PlayStation 2, pavimentou caminho para tornar a franquia spin-off de Shin Megami Tensei, mais popular do que o título que o originou. O que parece estar entranhado no DNA dos JRPGs que a ATLUS desenvolve até hoje, teve início, justamente, com P3. Me refiro, especificamente, ao sistema de calendário, que dá linearidade a sua narrativa; e, principalmente, o aspecto social totalmente integrado ao gameplay e sua história instigante. Uma das principais mensagens é de que o que nos fortalece são nossas relações sociais e afetivas.
As Personas e os vínculos sociais, em P3, são representados por cartas de tarot. Todos os vínculos sociais que estabelecemos no jogo são compostos por Arcanos Maiores. Eles apontam a jornada de evolução espiritual, representando lições que são as responsáveis pela transformação da vida. Em P3, o grupo de heróis é conhecido como Setor Especializado em Execução Supracurricular (SEES). Eles são representados pela Carta do Louco no tarot. Ela indica novos começos e a liberdade de seguir sua própria jornada, sem se prender a convenções sociais. O que, narrativamente, faz todo o sentido.
Filósofos contratualistas, como Thomas Hobbes, Jean-Jacques Rousseau e John Locke, defendiam a formação de uma sociedade política organizada para retirar os homens de seu estado natural. Essa relação entre sociedade e Estado é chamado, metaforicamente, de Contrato Social. Nossas noções de ética e moralidade, as Leis, as instituições, são um subproduto desse “contrato”. É à partir daí que valores, alheios à nossa vontade, são construídos e impostos a todos nós.
O “homem civil” - pois convertido a um ser social - passa a utilizar uma espécie de máscara, que dita nossos comportamentos. O nosso “eu”, nesse sentido, é construído através de numerosas teias de relações que vamos tecendo durante toda a vida, unido as regras que moldam as dinâmicas sociais. Persona, em latim, significa, justamente, “máscara”. Em suma, o que os protagonistas do jogo fazem é se desgarrar desses valores.
Em Persona 5, esse libertar, se dá retirando uma máscara. E aí, a sua Persona, que representa o seu “eu” verdadeiro é despertado. P3, no entanto, é mais polêmico no que se refere a esse despertar. Os personagens usam evocadores semelhantes a armas de fogo e simulam um suicício, ao atirar em suas próprias cabeças. O discurso utilizado é de que a Persona só se manifesta quando o usuário se coloca em uma situação real de perigo e estresse psicológico. Simbolicamente o “suicício simulado”, representa a aceitação da morte. O recente lançamento do remake de Persona 3, batizado de Persona 3 Reload, manteve essa mesma mecânica de gameplay.
Filósofos existencialistas, como Jean-Paul Sartre, acreditam que viver é algo angustiante, pois a vida nos coloca frente à inevitabilidade de realizar escolhas. O suicídio, nesse sentido, seria um ato final de liberdade ou sua expressão máxima, onde o indivíduo escolhe não mais fazer escolhas, deixando, dessa forma, de existir. O disparar dos evocadores do SEES pode representar a morte desse “eu” social. Tal qual a liberdade de seguir a jornada, sem amarras, como define a Carta do Louco.
Por outro lado, o sociólogo Èmile Durkheim, em sua obra O Suicício, destacou três tipos de suicídio: o egoísta, o anômico e o altruísta. De forma bem resumida, o suicídio egoísta se dá através de um descontentamento do indíviduo com a sociedade em que vive. Nesse sentido, a vida perde sentido. O anômico, à partir de um mudança das normas e regras que hierarquizam a sociedade, alterando o status quo do indivíduo em questão.
A simulação com os evocadores dos portadores de Personas, nos permite associá-los - simbolicamente - ao suicício altruísta. Segundo Durkheim, ele acontece quando o indivíduo deseja se desfazer de sua vida em nome de um senso de dever social. Cada um dos personagens passaram ou passam por dramas ligados à perda e parecem não conseguir se encaixar socialmente. Conjurar suas Personas, salvar o mundo do perigo - representado pelas Sombras do Tártaro (a dungeon do jogo) - faria parte de um sacrifício visando um bem maior.
O suicídio é tratado não só como um grave problema de saúde, mas também como uma epidemia de proporções mundiais. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio é a causa da morte de cerca de 800 mil pessoas todos os anos. E a terceira principal causa da morte de jovens entre 15 e 29 anos. Longe de qualquer interpretação que possamos fazer sobre esse “suicídio simbólico”, visto em P3, e quaisquer argumentos utilizados pela ATLUS pra justificá-los, fazer disso uma mecânica num videogame é, no mínimo, um desrespeito.

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