O avançar do sistema capitalista transformou as manifestações artísticas em mercadoria. O produto que é vendido é a diversão, o entretenimento. Dentro da lógica liberal, é a ação que tomamos para descansarmos e estarmos aptos ao trabalho no dia seguinte. A ideia do lazer, no entanto, não esvazia o fato de que, mesmo nesses momentos, há a possibilidade de reflexão sobre a nossa realidade. Isso porque tudo que consumimos, dentro da indústria cultural, carrega uma cadeia discursiva.
Esses discursos ou endossam a nossa realidade social e política ou a subvertem. Não existe, nesse sentido, meio termo ou imparcialidade. Perceber ou não tais discursos é questão de perspectiva e vai depender da vontade do “consumidor” ou de sua “carga cultural”. Essa lógica pode muito bem ser aplicada aos jogos de videogame. A forma como cada jogador os experimenta é pessoal. A interpretação, muitas das vezes, é subjetiva, fruto dos valores e dos nossos conhecimentos. Não querer enxergar a retórica presente, é uma escolha.
Você pode jogar The Last of Us e achar que é só mais um survival horror. Jogar Celeste e achar que é só um joguinho com desafios de plataforma. Se distrair, única e exclusivamente, com o divertido sistema de batalha do RPG Clair Obscur: Expedition 33. É uma forma monocromática de se consumir essas obras, mas o jogador pode optar por seguir esse caminho. O que não podemos fazer é atacar projetos, jogos e seus desenvolvedores, pura e simplesmente, porque suas narrativas nos fazem refletir sobre o nosso mundo atual.
Me recordo de ver pessoas, nas redes sociais, vibrando com o fracasso comercial de Tales of Kenzera: ZAU, pelo simples fato de sua história narrar um pouco a cultura de povos da África subsaariana. De toda “polêmica” em cima de Yasuke, um dos protagonistas de Assassin’s Creed Shadow, pelo simples fato de ser um samurai negro; ou de todo ódio voltado para a orientação sexual de Ellie, em The Last of Us. Até o anúncio de GTA VI - uma franquia que sempre carregou o status de sátira da sociedade estadunidense - foi alvo dessas pessoas.
Toda vez que um jogo novo é anunciado, parte da comunidade gamer parece partir numa espécie de Cruzada, fiscalizando quaisquer aproximação desses títulos com pautas progressistas. Boicotes e “análises bombas”, inclusive, são usadas como estratégias para demonstrar a insatisfação. Esse comportamento evidencia o fato de que o problema não é o jogo carregar uma mensagem em si. Mas sim o tipo de mensagem que ele carrega. Em meio a forte polarização política no mundo, gostar ou não de um jogo parece se alinhar, justamente, ao espectro político da quem os consome.
Por que jogos com discursos mais reacionários não sofrem o mesmo ódio dessas pessoas? Justamente, porque endossam uma realidade torta que é normalizada. As falas, sustentadas pela ideia da mercadorização da cultura, como uma mídia voltada apenas para a diversão, só são utilizadas para mascarar os preconceitos daquele que joga. As mensagens que são atacadas, se referem sempre a questões ligadas a preconceitos de todos os tipos (misoginia, racismo, homofobia), de luta por direitos e outros debates que, em tese, não deveriam estar associados a escolha política; e sim por uma questão de humanidade.
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